O Quadro


        No segundo andar, eu batia à porta da esquerda. Fazia tempo que eu não fazia aquele caminho e, por isso, não sabia o que esperar do apartamento. Pela primeira vez, eu entrava pela sala e, de alguma maneira duvidosa, te analisei. Tua beleza frágil e aparência doente continuavam ali, os cabelos pretos ondulados, a pele cor da minha. Fazia tempo, mas não mudara, assim como não mudara nada de lugar.

O apartamento já tinha um ar nostálgico daquela primeira vez que pisei lá, usando all star, vestido e meia calça no calor, apenas para fazer grau, contudo agora, conseguia superar. Tudo estava igual. Teus livros espalhados, tua coleção de miniaturas, a mesa de centro, a pequena TV e os dois sofás, todos com o mesmo estofado. Era estranho voltar e ver tudo idêntico, mas por pouco tempo pude observar.

Tu eras urgente, me empurravas contra uma das paredes e dizia que não aguentava mais a saudade; dizias que queria consertar teus erros e que dessa vez seria diferente. Eu estava assustada; havia ido apenas conversar, queria saber como estavas após diversas perdas, como estavas junto à escuridão de tua vida.

O apartamento já não tinha mais aquele cheiro usual de limpeza, de naftalina misturada com teu cheiro forte, não. O apartamento cheirava a cigarros e café, misturados com o seu aroma que sempre me agradou mais do que qualquer outro… Outra coisa ali, era a sujeira: a louça estava por lavar e a poeira estava espessa. Percebi que tentaras esconder sob tapetes e sob móveis, mas a poeira era igual a mágoa em teus fundos olhos: não havia jeito decente de disfarçar.

Eu te questionava, sutilmente, enquanto tentava fugir dos teus braços, como estavas após tantos anos de solidão, como estavas após tantos desencontros com o próprio destino. Eu não queria ceder, nem você.

Teu ostensivo e orgulhoso lado falava alto, me repetia estar bem. Era cômico que, depois de tanto, ainda tentavas se esconder da única pessoa que nunca havia desistido de te esperar. Havia alienação aparente em ti, fazia um tempo que não saías de casa e não havia como acobertar.

Adentrei teu quarto, por cansar da sala, e achei a velha máquina de escrever ao lado da sacada, papéis revoltos pelo chão, cheios de escrita, cinzas de cigarros e manchas de café. As roupas de cama eram as mesmas que as do dia em que fui embora.

Perturbada, resolvi tentar arrancar respostas mais uma vez, enquanto voltávamos para a sala. “Como tens aguentado todo esse tempo em solidão?”. Mexeu no seu cabelo timidamente, mostrou-me os dentes, meio sem jeito, e apontou para frente, dizendo: “Sozinho nunca estive, apenas demorei a perceber.”.

Olhei pra onde apontavas, apreensiva, e descobri o quadro, que um dia havia me prometido jogar fora, me encarando. Aposta ganha, eu sabia que nunca se livrarias disso, motivo pelo qual resolvi ceder-te a última das chances.

A partir daquele dia, nunca mais saímos de lá. Deixei a vida que construí de lado e, pela primeira vez, conheci tua paz.

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