Botas em dia de chuva

Eu só conseguia pensar naquela bomba de chocolate deliciosa da padaria. Peguei meu casaco preto que tanto gosto. Enfiei as botas, que achei de baixo da cama, nos pés. Peguei as chaves que estavam em cima da mesa e tranquei a porta de casa.

O céu estava lindo. O azul mais azul que eu já havia visto. Consegui ouvir minha mãe gritando da janela para que eu voltasse e pagasse o guarda-chuvas. Mas com aquele céu tão bonito, Deus não teria coragem de estraga-lo jogando uma gotinha de água que fosse.

Não fazia ideia de que horas era. Estava escondendo meu pijama atrás do casaco. Havia deixado o celular em cima da mesinha, junto com o relógio. 

Eu andava olhando para meus pés. Colocava um na frente do outro, na pontinha da calçada, tentando me equilibrar com os braços abertos. Acho que a rua inteira estava olhando, mas eu nem ligava. Gostava de ver como os meus pés ficavam delicados com aquelas botas. 

Tentava fingir que era uma bailarina. E as botas eram sapatilhas. Ás vezes sinto falta dos plies e releves. Já faz tanto tempo. Ainda me lembro do motivo pelo qual larguei tudo aquilo. Um motivo com bochechas rosadas, nariz de batata, olhos azulados e um cabelo comprido.

Quando me lembro de seu rosto, consigo ter a mesma sensação da primeira vez em que falei com ela. Ou melhor. Que ela falou comigo.

Não sei se ter tantas lembranças suas faz bem para minha saúde. Mas me sinto bem ao lembrar.

Ela sempre me dizia que ballet era para garotinhas. Mas pensando bem naquela época eu era uma garotinha. 

Mesmo sendo dois anos mais nova do que eu, sempre me senti uma garotinha perto dela, que sempre agia como uma mulher, que sempre sabia das coisas, que sempre fora independente. Mas não tem problema. Seu lado mais sensível é revelado quando ri. Ah. Aquela risada. Nunca me esquecerei dela. Nem mesmo quando eu for velhinha e estiver em uma cadeira de balanços. Sempre que ver uma garota de quinze anos rindo, me lembrarei de sua risada.

Sinto falta dos momentos em que passei ao seu lado. Cada hora parecia minuto. Cada minuto parecia segundo. E quando eu ia para casa, tentava dormir o mais cedo possível. Quanto mais cedo eu dormisse, mais rápido chegaria o dia seguinte, mais rápido eu a veria. E acho que foi por isso que escolhi largar as sapatilhas. Quanto mais tempo passasse ao seu lado, sentia que ela me amaria mais. Fiquei dias sem ir. Depois semanas. E acabei não indo mais.

Foi difícil aceitar quando tudo se esgotou. Quando o destino resolveu que nos separaria. 

Do mesmo jeito que consegui ter a sensação a primeira vez em que nos falamos, também consigo ter da última. 

Nunca fomos de nos despedir. Desde o começo. Mas consegui sentir em seu beijo que aquele seria o último. O cenário não fora dos melhores. Abrimos o boxe do banheiro da escola, sentei no vaso sanitário e ela em meu colo. O gosto de cigarro em sua boca continuava o mesmo. Sempre mandei que ela parasse de fumar, mas sinceramente, eu adorava aquele gosto amargo.

Ela me disse tchau e foi embora. E essa foi a ultima vez em que a vi. A partir daí, meu coração decidiu que acabaria. E acho que o dela também.

Puc. Droga! Estava chovendo. Logo com este céu tão lindo. Deveria ter voltado e pegado o guarda-chuvas, quando minha mãe pedira. 

O bom é que a padaria não estava tão longe assim. Mais uma esquina e pronto. Em questão de segundos o chuvisco se transformou em um temporal. Fui obrigada a sair correndo com a cabeça abaixada para não molhar os cabelos. Acabei trombando com uma garota com todo o impulso que a corrida me proporcionara.

Os óculos eram bem escuros. A cor do batom era bem vermelho. A garota derrubou todas as sacolas no chão, por minha causa.  Ela poderia ter me xingado. Ter virado a cara e ido embora. Me dado uma lição de moral ou simplesmente pedir desculpas Mas tudo o que saiu de sua boca foi um "oi" com o mesmo hálito de cigarro de sempre.